Sensível pra cacete...

Sensível pra cacete...




Sensível pra cacete, maldosa na mesma intensidade, feliz de andar cantando e depressiva de nunca achar que uma janela é só uma janela. E cheia de manias bem estranhas.
Eu sou sim a pessoa que some, que surta, que vai embora, que aparece do nada, que fica porque quer, que odeia a falta de oxigênio das obrigações, que encurta uma conversa besta, que estende um bom drama, que diz o que ninguém espera e salva uma noite, que estraga uma semana só pelo prazer de ser má e tirar as correntes da cobrança do meu peito.


Que acha todo mundo meio feio, meio bobo, meio burro, meio perdido, meio sem alma, meio de plástico, meia bomba. E espera impaciente ser salva por uma metade meio interessante que me tire finalmente essa sensação de perna manca quando ando sozinha por aí, maldizendo a tudo e a todos. Eu só queria ser legal, ser boa, ser leve. Mas dá realmente pra ser assim?


Eu sou essa pessoa. Que não faz questão de ver quem a minha mente castradora me manda amar e que simpatiza, ainda que por alguma doença, com quem me judia aos pouquinhos. Que quer matar a velhinha que demora horas para descer as escadas e segundos depois carrega a porra da velhinha no colo e chora sensibilizada pelas fragilidades do mundo. Eu só queria que tudo fosse belo, cheirasse bem e tivesse o brilho de um fim de tarde com bebezinhos sorridentes. Mas o mundo, as pessoas, as validades, tudo expira, tudo cai, os mitos viram defeituosos, as fortalezas de vidro vagabundo, tudo perde o encanto. E para mim, aceitar tudo isso ainda é comer o feijão com pressa e entupir uma narina. Não entra direito.


Eu volto a focar o vazio e essa imensa tristeza sem motivo dentro do meu peito, ainda que o Cristo me mande um abraço aberto não muito longe dali.
Eu sou essa pessoa. Que deixa doer porque esse é o único esporte que se pode fazer deitada e que dorme demais como uma resposta blasé a esse mundo que pensa mandar em mim o tempo todo.


Com medo das paredes fecharem e meus amigos não me amarem mais. Com medo de sentir tanto, tanto, a vida, e vomitar em cima do mundo. Com medo de quase tudo o que se mexe e muito mais do que não se mexe. Mas com uma curiosidade que cura e emudece qualquer pânico.(...) Equilibrar em cima da cabeça. Essa sou eu. Preconceituosa. Com preguiça de gente brega, de gente pobre de viço. Com preguiça dos grupinhos de gente rica que ri aristocraticamente e, mesmo tendo um currículo de mil viagens à Europa, não entendeu nada do que é ter um ou outro comentário próprio a respeito do que vê. E também tenho preguiça de mim.


Essa sou eu. Andando rápido por aí. Um pouco de olheira. Com uma tromba imensa, pois me protejo de tudo e odeio quem passa por mim. Qualquer esquina pode ser o fim. Andando lenta, fazendo amizade na banca de jornal, a espera da esquina que mude meu caminho e me ajude a ter menos medo.
Piroca verde, não me deixe mais sorrir quando quero mandar se foder. Não me deixe mais presa em filas, quando tudo o que eu quero é não mais pertencer ou provar. Apenas pensar na vida, usar meus cremes, botar uma meia, fazer minha massa ruim, assistir Sopranos e sei lá porque sentir uma alegria que poucas vezes senti ao longo da vida. Ficar comigo, só comigo. E sorrir pensando que um dia alguém tão bacana quanto eu poderia se deitar ao meu lado pra gente ser tão especial juntos.


Não me deixe mais paquerar qualquer cara bobo, mal vestido, sem assunto e sem magia só porque preciso de algum bosta me ligando pra me sentir mais mulher. Isso é coisa de gente imoral, de gente com mais medo da solidão do que o auge do meu medo da solidão. Não me deixe mais confundir amor com ego e ficar aprisionada tantos bons anos num rapaz tão comum. Comum ao ponto de eu querer ser tão comum quanto ele só porque, para mim, isso é ser diferente. (...)


Que perda de tempo não me amar absurdamente. Não me validar absurdamente. Que perda de tempo. Eu nunca amei tanto cada defeito e bizarrice minha.

Tati Bernardi

Os livros não mudam o mundo!


-homenagem inesquecível!!

Presente



Ver de perto o lugar de mais sentido 
é como ver perdido os olhos de quem não sai de perto da memória... 
O recente olhar que brilha  feito arco-íris no céu da minha emoção.

Da emoção que, às vezes, viola a dança da alegria 
e põe pra dentro da própria agressão.

Ver ouvir cheirar tocar saborear: 
sentir para mais do que  perto já que a vida pede assim. 
Notícias do amor de sempre que caminha sem paradeiro
e à eterna revelia do que habita no sentido do meu olhar. 
Como a Baía. Como a canção que faz sonhar. 
Como o tambor fazendo arrepiar a pele. 
E o desejo de sair sem voltar...

Toda sensação, que se descreve para fora de mim, 
ressoa no mais íntimo desejo de ter o Presente aqui. 
Enquanto espero,
 tenho a alegria da paisagem mais linda do lugar que conheci.


Marlon Marcos








Horas Rubras
Horas profundas, lentas e caladas 
Feitas de beijos rubros e ardentes, 
De noites de volúpia, noites quentes 
Onde há risos de virgens desmaiadas... 

Oiço olaias em flor às gargalhadas... 
Tombam astros em fogo, astros dementes, 
E do luar os beijos languescentes 
São pedaços de prata p'las estradas... 

Os meus lábios são brancos como lagos... 
Os meus braços são leves como afagos, 
Vestiu-os o luar de sedas puras... 

Sou chama e neve e branca e misteriosa... 
E sou, talvez, na noite voluptuosa, 
Ó meu Poeta, o beijo que procuras! 

Florbela Espanca, 
in "Livro de Sóror Saudade"

Fado


 Fado
 "Não amamos quem queremos, 
como queremos 
e porque queremos. 
Amamos como podemos, 
e muitas vezes contra a nossa vontade, 
 remando contra todas as marés,
 envoltos no mistério de uma escolha que não é feita por nós, 
mas por uma força que nos é superior 
à qual os místicos chamam destino,
 os cientistas chamam química
 e os portugueses chamam fado."

Margarida Rebelo Pinto




 

Arte de Amar





















Metidos nesta pele que nos refuta, 

Dois somos, o mesmo que inimigos. 
Grande coisa, afinal, é o suor 
(Assim já o diziam os antigos): 
Sem ele, a vida não seria luta, 
Nem o amor amor. 

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"





Amar


Amar:   
 

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, 
senão 
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.


Carlos Drummond de Andrade






O amor, Meu amor


O amor, Meu amor 




Nosso amor é impuro 
como impura é a luz e a água 
e tudo quanto nasce 
e vive além do tempo. 

Minhas pernas são água, 
as tuas são luz 
e dão a volta ao universo 
quando se enlaçam 
até se tornarem deserto e escuro. 
E eu sofro de te abraçar 
depois de te abraçar para não sofrer. 

E toco-te 
para deixares de ter corpo 
e o meu corpo nasce 
quando se extingue no teu. 

E respiro em ti 
para me sufocar 
e espreito em tua claridade 
para me cegar, 
meu Sol vertido em Lua, 
minha noite alvorecida. 

Tu me bebes 
e eu me converto na tua sede. 
Meus lábios mordem, 
meus dentes beijam, 
minha pele te veste 
e ficas ainda mais despida. 

Pudesse eu ser tu 
E em tua saudade ser a minha própria espera. 

Mas eu deito-me em teu leito 
Quando apenas queria dormir em ti. 

E sonho-te 
Quando ansiava ser um sonho teu. 

E levito, voo de semente, 
para em mim mesmo te plantar 
menos que flor: simples perfume, 
lembrança de pétala sem chão onde tombar. 

Teus olhos inundando os meus 
e a minha vida, já sem leito, 
vai galgando margens 
até tudo ser mar. 
Esse mar que só há depois do mar. 

Mia Couto, in "idades cidades divindades"

Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo

Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo

Estou mais perto de ti porque te amo. 
Os meus beijos nascem já na tua boca. 
Não poderei escrever teu nome com palavras. 
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me. 

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto. 
Quero a tua boca aberta em minha boca. 
E amo-te como se nunca te tivesse amado 
porque tu estás em mim mas ausente de mim. 

Nesta noite sei apenas dos teus gestos 
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos. 
Trago as mãos distantes do teu peito. 

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte. 
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim. 
E eu estou perto de ti porque te amo. 

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

Soneto de Mal Amar

Soneto de Mal Amar
Invento-te    recordo-te   distorço 
a tua imagem mal e bem amada 
sou apenas a forja em que me forço 
a fazer das palavras tudo ou nada. 

A palavra desejo incendiada 
lambendo a trave mestra do teu corpo 
a palavra ciúme atormentada 
a provar-me que ainda não estou morto. 

E as coisas que eu não disse? Que não digo: 
Meu terraço de ausência    meu castigo 
meu pântano de rosas afogadas. 

Por ti me reconheço e contradigo 
chão das palavras mágoa joio e trigo 
apenas por ternura levedadas. 


Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras'