Sabedoria de Avó...

Quando eu for bem velhinha,
espero receber a graça de,
num dia de domingo,
me sentar na poltrona da biblioteca e,
bebendo um cálice de Porto, dizer à minha neta:

- Querida,venha cá.
Feche a porta com cuidado e sente-se aqui ao meu lado.
Tenho umas coisas pra te contar.
E assim, dizer apontando o indicador para o alto:
- O nome disso não é conselho, isso se chama colaboração!

Eu vivi, ensinei, aprendi, caí,levantei 
e cheguei a algumas conclusões.
E agora, do alto dos meus 82 anos, 
com os ossos frágeis a pele mole e os cabelos brancos, 
minha alma é o que me resta saudável e forte.

Por isso, vou colocar mais ou menos assim:

É preciso coragem para ser feliz.
Seja valente.
Siga sempre seu coração.
Para onde ele for, 
seu sangue, suas veias e seus olhos também irão.
Satisfaça seus desejos.
Esse é seu direito e obrigação.

Entenda que o tempo 
é um paciente professor que irá te fazer crescer,
mas escolha entre ser uma grande menina
ou uma menina grande,
vai depender só de você.

Tenha poucos e bons amigos.
Tenha filhos. Tenha um jardim.
Aproveite sua casa, 
mas vá a Fernando de Noronha,
a Barcelona e a Austrália.

Cuide bem dos seus dentes.
Experimente, mude, corte os cabelos.
Ame. Ame pra valer, mesmo que ele seja o carteiro.
Não corra o risco de envelhecer dizendo
"ah, se eu tivesse feito..."
Vai que o carteiro ganha na loteria 
- tudo é possível, e o futuro é imprevisível.

Tenha uma vida rica de vida!
Viva romances de cinema, 
contos de fada e casos de novela.
Faça sexo, 
mas não sinta vergonha 
de preferir fazer amor.

E tome conta sempre da sua reputação,
ela é um bem inestimável.
Porque sim, 
as pessoas comentam, reparam,
e se você der chance 
elas inventam também detalhes desnecessários.

Se for se casar, faça por amor.
Não faça por segurança, carinho ou status.

A sabedoria convencional 
recomenda que você se case 
com alguém parecido com você, 
mas isso pode ser um saco!

Prefira a recomendação da natureza, 
que com a justificativa de aperfeiçoar os genes na reprodução,
sugere que você procure alguém diferente de você.
Mas para ter sucesso nessa questão,
acredite no olfato e desconfie da visão.
É o seu nariz quem diz a verdade
quando o assunto é paixão.

Faça do fogão, 
do pente, da caneta, 
do papel e do armário, 
seus instrumentos de criação.
Leia. Pinte, desenhe, escreva.
E por favor, dance,
dance, dance até o fim,
se não por você, o faça por mim.

Compreenda seus pais.
Eles te amam, cada um do seu jeito,
para além da sua imaginação,
sempre fizeram o melhor que puderam,
e sempre farão.

Não cultive as mágoas 
- porque se tem uma coisa que eu aprendi nessa vida
é que um único pontinho preto
num oceano branco deixa tudo cinza.

Era só isso minha querida.
Agora é a sua vez.
Por favor, 
encha mais uma vez minha taça 
e me conte: 
como vai você? 
 
 

Cora Coralina

 
"Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregue à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
 
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.
Que pretendes mulher?
Independência, igualdade de condições...
Emprego fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
 
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.
Mulher, não te deixes castrar.
 
Serás um animal somente de prazer
e ás vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura."

(Vintém de Cobre –Meias Confissões de Aninha











“O saber a gente aprende com os mestres e os livros. A sabedoria se aprende é com a vida e com os humildes.” 

Cora Coralina 












 
"Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
..."


Cora Coralina









"Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.

Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.

Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.

Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.

Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar."

(Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha, p. 156, 8°ed.1996)








Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. 
Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina (Outubro, 1981)






 
"...
Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.

Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos"



Cora Coralina







"A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado

Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.

Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver."



Cora Coralina






"Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.

Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.

Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça."
Cora Coralina








“Não sei se a vida é curta ou longa para nós,
mas sei que nada do que vivemos tem sentido, 
se não tocarmos o coração das pessoas. 

Muitas vezes basta ser: 
colo que acolhe, 
braço que envolve, 
palavra que conforta, 
silêncio que respeita, 
alegria que contagia, 
lágrima que corre, 
olhar que acaricia,
desejo que sacia, 
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo, 
é o que dá sentido à vida. 

É o que faz com que ela não seja nem curta,
nem longa demais, 
mas que seja intensa, 
verdadeira,
pura enquanto durar. 

Feliz aquele que transfere o que sabe
e aprende o que ensina.” 

Cora Coralina









  
"Nas palmas de tuas mãos 
leio as linhas da minha vida." 

Cora Coralina














"Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã."

Cora Coralina










"Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu... 

E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo. "

Cora Coralina  










“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.” 
Cora Coralina














Fonte:http://estefaniadalia.blogspot.com/p/editorial-de-moda.html
ensaio realizado na lindíssima e singela Cidade do Goiás - GO, inspirado nos poemas de Cora Coralina! 
Fotografia e concepção: Estefânia Dália
 




 

Obscuro Domínio



Amar-te assim desvelado
entre barro fresco e ardor.
Sorver o rumor das luzes
entre os teus lábios fendidos.

Deslizar pela vertente
da garganta, ser música
onde o silêncio aflui
e se concentra.

Irreprimível queimadura
ou vertigem desdobrada
beijo a beijo,
brancura dilacerada

Penetrar na doçura da areia
ou do lume,
na luz queimada
da pupila mais azul,

no oiro anoitecido
entre pétalas cerradas,
no alto e navegável
golfo do desejo,

onde o furor habita
crispado de agulhas,
onde faça sangrar
as tuas águas nuas.


Eugénio de Andrade, 

in "Obscuro Domínio"








Caminhar ao sol




Hoje eu vou sair de cena
Me livrar da minha dor, 
exorcizar

Me lembrar que vale a pena
Rir de tudo, me benzer, escapar
Sem razão, sem pensar

Só viver, 
sem ter hora pra chegar
Caminhar ao sol
Encontrar alguém
Me deixar levar
Se o meu dia for assim,
tá tudo bem

Enganei minha saudade
Com histórias que só eu sei inventar
Fantasiei a realidade
Não me importa
onde isso tudo vai dar
Sem razão, sem pensar

Só viver, 
sem ter hora pra chegar
Caminhar ao sol
Encontrar alguém
Me deixar levar
Se o meu dia for assim,
tá tudo bem

Mauricio Gaetani








1- Caminho pela rua.
Há um profundo buraco no passeio
E caio lá dentro.
Estou perdido... não sei o que fazer.
A culpa não é minha.
Preciso de uma eternidade para descobrir a saída.

2- Caminho pela mesma rua.
E lá está um grande buraco no passeio.
Finjo que não vejo.
Caio outra vez.
Custa-me a acreditar que esteja no mesmo lugar,
Mas a culpa é toda minha.
Ainda preciso de muito tempo para sair.

3- Caminho pela mesma rua.
Há um profundo buraco no passeio.
Vejo que lá está.
Mas caio... Já é um hábito.
Tenho os olhos abertos,
Sei onde estou
Mas a culpa é minha
E saio imediatamente.

4- Caminho pela mesma rua
Há um grande buraco no passeio,
E passo ao lado.

5- Caminho por outra rua.

Não tem namorado






Quem não tem namorado
é alguém que tirou férias remuneradas de si mesmo
Namorado é a mais difícil das conquistas.
Difícil porque namoro de verdade é muito raro.
Necessita de adivinhação, de pele, de saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. 
Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão é fácil.
 Mas, namorado, mesmo, é muito difícil.
Namorado não precisa ser o mais bonito,
 mas aquele a quem se quer proteger e
 quando se chega ao lado dele a gente treme,
sua frio e quase desmaia pedindo proteção.
 A proteção dele não precisa ser parruda, decidida ou bandoleira:
 basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.

Quem não tem namorado, não é que não tem um amor:
é quem não sabe o gosto de namorar.
Se você tem pretendentes, dois paqueras, um envolvimento e dois amantes,
 mesmo assim pode não ter um namorado.
Não tem namorado quem não sabe o gosto da chuva,
 cinema, sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho.

Não tem namorado quem transa sem carinho,
quem se acaricia sem vontade de virar sorvete ou lagartixa é quem ama sem alegria.

 Não tem namorado quem faz pacto de amor apenas com a infelicidade.
 Namorar é fazer pactos com a felicidade
ainda que rápida, escondida, fugida ou impossível de durar.

Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas:
 de carinho escondido na hora em que passa o filme:
de flor catada no muro e entregue de repente,
de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque lida bem devagar,
de gargalhada quando fala junto ou descobre a meia rasgada;
de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia
 ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.

Não tem namorado quem não gosta de dormir agarrado,
 fazer cesta abraçado, fazer compra junto.

Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor,
 nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele,
 abobalhados de alegria pela lucidez do amor.

Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado
 e sai com ela para parques, fliperamas, beira d'agua, show do Milton
Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos e musical da Metro.

Não tem namorado quem não tem música secreta com ele,
quem não dedica livros, quem não recorta artigos,
quem não chateia com o fato de o seu bem ser paquerado.
 Não tem namorado quem ama sem gostar;
quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar.

Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado
de repente no fim de semana, na madrugada
ou meio-dia de sol em plena praia cheia de rivais.

Não tem namorado quem ama sem se dedicar;
quem namora sem brincar; quem vive cheio de obrigações;
quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele.

Não tem namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz.

 Não tem namorado quem não fala sozinho,
não ri de si mesmo, e quem tem medo de ser afetivo.

Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre
e você vive pesando duzentos quilos de grilos e de medo,
ponha a saia mais leve, aquela de chita, e passeie de mãos dadas com o ar.
Enfeite-se com margaridas e ternuras, e escove a alma com leves fricções de esperança.
 De alma escovada, e coração estouvado,
saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim.
Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo da janela.
Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada.
 Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta
e do céu descesse uma névoa de borboletas,
cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteira:

 Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu
aquele pouquinho necessário
a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido 
Enlou-cresça.

Carlos Drummond de Andrade