O Segredo de Tetê







O espelho art déco era o amigo secreto, ouvinte fiel de tantas confissões daquela senhora de porte seguro, ares e pose de embaixatriz, sorriso nos lábios, com a receita exata para ser feliz. Não é que Theresa, dama antiga pós-moderna que presenciara a virada do século, já não tivesse enfrentado um tsunami. As intempéries da vida, os desafios, quedas abruptas, e o tempo tentavam mapear, na face refletida, tristezas. Rugas eram para Tetê nada mais do que um mero reflexo. Logo se desfaziam através de incursões estéticas de última geração, que, como borrachas de boa qualidade, apagam borrões de lápis em folhas de cadernos de crianças. Costumava repetir: "faça do limão uma limonada." Isso, para Theresa, era viver bem.


Toda a quarta-feira, recebia a jovem sobrinha, funcionária de classe média que estava deixando sua beleza natural sugar-se por uma depressão que já durava anos. A moça a visitava para contar seus dramas pessoais e conflitos no trabalho. Sempre o mesmo ritual: ambas subiam, através do elevadorzinho interno do apartamento de Tetê, à cobertura. Lá, a varanda repleta de orquídeas coloridas e flores de jasmim, exalaria o perfume da alegria: Theresa era o aroma da felicidade em flor.


No terraço amplo, quase um jardim secreto, havia mesas e cadeiras de plástico usadas para as constantes recepções da família: seis irmãos e suas ramificações genéticas. Uma delas era Gisele. Sentaram-se na mesa sem guardassol. Anoitecia e as estrelas teriam muito para contar. Ajudariam Tetê na lição de vida que daria à sobrinha. Tais luzes que piscavam lá no infinito eram enfeites brilhantes no geométrico, longo vestido que é o céu. Brincavam com as aplicações de cristais Swarovski na blusa azul de Theresa: 84 anos, aparência de cinqüenta.


- Quero folhear esse livro que você está segurando, Gisele.


- É sobre déficit de atenção. Dizem que eu tenho.


- Vou ficar com ele, impôs, soberanamente: quem faz legendas para televisão a cabo não tem nada disso. Vamos, conte-me como foi o seu dia de trabalho.


Após a moça relatar seus conflitos, Theresa lhe dava as dicas: Na próxima vez que Sofia tentar imitar a sua voz de cantora lírica, diga que não gosta. Imponha respeito. Preparada para ouvir o clichê "eu não vou conseguir", Tetê adiantava-se: olhe fixo nos olhos dela. As pessoas gostam de quem se impõe. Veja só, a época do meu divórcio foi uma fase muito difícil. Eu recebi você, recém-operada de um rim, na mansão que eu possuía em Brasília, enquanto estava enfrentando um difícil processo de separação. Em menos de três meses, perdi mãe, pai, marido. Não cedi à vontade de me jogar na cama. A dor me impelia a fazer lindos penteados e a vestir-me com cores alegres, que eu sempre combinava com a maquiagem para sair princesa. "Princesa, não. Rainha," dizia Gisele. E Theresa esboçava um sorriso, mostrando seus lindos dentes, produto de cuidadosa escovação diária: não havia um postiço.


Hora de chamar a farmácia. A Internet agiliza os serviços e Theresa encontrou o número da drogaria mais próxima. Pediu Novalgina, comentando que a filha médica não queria que ela sofresse demais com as dores características da doença terminal. O atendente solicitou-lhe o telefone, localizou o endereço. Entrega urgente. Tetê fitava Gisele com um meigo semblante.


Domingo. As folhas de outono enfeitavam as ruas com nuances de amarelo e marrom. No quarto de Theresa, havia dois enormes tubos de oxigênio esverdeados, um de cada lado de sua cama. A família estava toda reunida na "sala do elevadorzinho", cujo corredor levava diretamente ao aposento da Rainha Tetê: o quarto da penteadeira art déco.


Em congruência com a perfeita organização da casa da Embaixatriz da Beleza, havia fila para entrar no quarto para a despedida. Gisele, esgueirando-se, quebrou todos os protocolos, aparecendo umas três vezes, com direito a foto, olhares de cumplicidade e cochicho no ouvido: "Eu amo viver, Gisele. Você vai continuar, para mim, a participar dessa aventura fantástica. Terça-feira que vem, volte aqui. Será o dia mais feliz de sua vida."


Na semana seguinte, o corpo de Theresa, submerso por coroas e mais coroas de flores saudosas, encontrou Gisele. Havia várias pessoas na procissão do adeus. Algumas choravam e outras aparentavam alegria, assim como a própria sobrinha da Tetê. Bem no fundo do coração da moça, Theresa vestia-se linda: com renda e estrelas do céu: vivia bem.

Fonte:http://www.li3.com.br/clientes/euamoescrever/conto.php?segredo-tet&p=4e4e88d86e862








Nenhum comentário:

Postar um comentário