Se...


Se você não consegue entender o meu silêncio
de nada irá adiantar as palavras, 
pois é no silêncio das minhas palavras
que estão todos os meus maiores sentimentos.

Oscar Wilde



A INutilidade Dos LIVROS – Roberto Arlt

"… E nenhum livro poderá lhe ensinar nada.
Salvo os que se escreveram sobre esta última guerra. Vale a pena conhecer esses documentos trágicos. O resto é papel…"
“Um leitor me escreve: Me interessaria muitíssimo que V.S.ª escrevesse algumas notas sobre os livros que os jovens deveriam ler, para que aprendam e formem um conceito claro, amplo, da existência (não excetuando, é claro, a experiência própria da vida)”.

O CORPO NADA LHE PEDE…

O corpo não lhe pede nada, querido leitor. Mas, onde o senhor vive? Acredita, por acaso, por um minuto, que os livros lhe ensinarão a formar “um conceito claro e amplo da existência”? Está enganado, amigo; enganado até dizer chega. O que os livros fazem é desgraçar o homem, acredite. Não conheço um só homem feliz que leia. E tenho amigos de todas as idades. Todos os indivíduos de existência mais ou menos complicada que conheci haviam lido. Lido, desgraçadamente, muito.
Se houvesse um livro que ensinasse, veja bem, se houvesse um livro que ensinasse a formar um conceito claro e amplo da existência, esse livro estaria em todas as mãos, em todas as escolas, em todas as universidades; não haveria lar que, na estante de honra, não tivesse esse livro que o senhor pede. Percebe?
O senhor não percebeu ainda que se as pessoas lêem é porque esperam encontrar a verdade nos livros. E o máximo que podem encontrar num livro é a verdade do autor, não a verdade de todos os homens. E essa verdade é relativa… essa verdade é tão pequenininha… que é preciso ler muitos livros para aprender a depreciá-los.

OS LIVROS E A VERDADE

Calcule o senhor que na Alemanha publicam-se anualmente mais ou menos 10.000 livros, que abrangem todos os gêneros de especulação literária; em Paris ocorre a mesma coisa; em Londres, idem; em Nova York, igual.
Pense nisto:
Se cada livro contivesse uma verdade, uma só verdade nova na superfície da Terra, o grau de civilização moral que os homens teriam alcançado seria incalculável. Não é assim? Agora, pense o senhor que os homens dessas nações cultas, Alemanha, Inglaterra, França, estão atualmente discutindo a redução de armamentos (não confundir com supressão). Agora, o senhor seja sensato por um momento. Para que serve uma cultura de dez mil livros por nação, despejada anualmente sobre a cabeça dos habitantes dessas terras? Para que serve essa cultura, se no ano de 1930, depois de uma guerra catastrófica como a de 1914, discute-se um problema que deveria causar espanto?
Para que serviram os livros, o senhor pode me dizer? Eu, com toda sinceridade, declaro que ignoro para que servem os livros. Que ignoro para que serve a obra de um senhor Ricardo Rojas, de um senhor Leopoldo Lugones, de um senhor Capdevila, para circunscrever-me a este país.

O ESCRITOR COMO OPERÁRIO

Se o senhor conhecesse os bastidores da literatura, perceberia que o escritor é um senhor que tem o ofício de escrever, como outro, o de fabricar casas. Nada mais. O que o diferencia do fabricante de casas é que os livros não são tão úteis como as casas e, depois… depois que o fabricante de casas não é tão vaidoso como o escritor.
Em nossos tempos, o escritor se acha o centro do mundo. Conta lorotas à vontade. Engana a opinião pública, consciente ou inconscientemente. Não revê suas opiniões. Acredita que o que escreveu é verdade, pelo fato dele ter escrito. Ele é o centro do mundo. As pessoas que experimentam dificuldades até para escrever para a família acreditam que a mentalidade do escritor é superior à de seus semelhantes e está enganada no tocante aos livros e no tocante aos autores.
Todos nós, os que escrevemos e assinamos, o fazemos para ganhar o arroz-com-feijão. Nada mais. E, para ganhar o arroz-com-feijão, não vacilamos, às vezes, em afirmar que o branco é preto e vice-versa. E, além disso, às vezes até nos permitimos o cinismo de dar risada e de achar que somos gênios…

DESORIENTADORES

A maioria de nós que escreve, o que faz é desorientar a opinião pública. As pessoas buscam verdades e nós lhes damos verdades enganosas. O branco pelo preto. É doloroso confessá-lo, mas é assim. É preciso escrever. Na Europa, os autores têm seu público; para esse público, dão um livro por ano. O senhor pode acreditar, de boa fé, que em um ano se escreva um livro que contenha verdades? Não, senhor. Não é possível. Para escrever um livro por ano é preciso contar lorotas.  Dourar a pílula. Encher a página de frases.
É o ofício, “o métier”. As pessoas recebem a mercadoria e acreditam que é matéria-prima, quando se trata apenas de uma falsificação grosseira de outras falsificações que também se inspiraram em falsificações.

CONCEITO CLARO

Se o senhor quer formar “um conceito claro” da existência, viva. Pense. Aja. Seja sincero. Não engane a si próprio. Analise. Estude-se. O dia em que o senhor conhecer a si próprio perfeitamente, lembre-se do que lhe digo: em nenhum livro vai encontrar nada que o surpreenda.  Tudo será velho para o senhor. O senhor lerá por curiosidade livros e livros e sempre chegará a esta fatal palavra terminal: “Mas se eu já tinha pensado isso”. E nenhum livro poderá lhe ensinar nada.
Salvo os que se escreveram sobre esta última guerra. Vale a pena conhecer esses documentos trágicos. O resto é papel…

El Mundo, 26/2/1930

Trecho extraído de Aguafuertes porteñas
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro